por Ramon Barbosa Franco

Raramente um jornalista ou um escritor, ou qualquer pessoa que se coloque a escrever algo sobre aquilo que lhe tocou, direciona a escrita para alguém. Exceto quando se trata de uma carta, um e-mail ou aquelas mensagens do correio elegante das festas juninas e das quermesses, tão típicas desta região do Estado de São Paulo. Aliás, carta escrita à mão e bilhetinhos românticos são, literalmente, coisas do passado. Quase ninguém mais se corresponde por papel e remetente. Hoje tudo é no direct, no ‘zap’, e se o sujeito não enviar a foto do lugar em que está, a pessoa lá do outro lado do smartphone desconfia que esteja mesmo é em outro lugar menos convencional. Ah, tempos das chamadas de vídeo!!!

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Então, como estava dizendo, dificilmente um jornalista ou um escritor quando se põe em marcha para redigir um texto para o público em geral, o faz pensando especificamente em alguém. Comigo é assim, pode haver colegas que redigem direcionando para determinadas pessoas, seja em forma de recado – às vezes ácidos – ou mensagens explicativas, pedidos de desculpas ou instâncias para reconciliação. Soube outro dia que ‘Grito de Alerta’, a música composta por Gonzaguinha, surgiu após uma conversa com Agnaldo Timóteo. Mas quando Gonzaguinha concluiu a letra e a composição musical, ao invés de deixar o amigo que lhe revelou segredos para que surgissem os versos como ‘São tantas coisinhas miúdas roendo, comendo, arrasando aos poucos o nosso ideal’, passou a letra de mão beijada para Maria Bethânia. Fez bem. Mesmo Timóteo esperneando, pois a Bethânia interpretou a canção com a isenção necessária e a tratando como arte, e não como desabafo ou recado.

E é sobre a arte que quero escrever e, em forma de crítica direcionada para que o meu filho caçula, o Gustavo Eduardo, de 13 anos, possa ler e compreender o que ele chamou de ‘angustiante’ e ‘dá falta de ar’ ao conferir as cenas iniciais e o resumo de ‘Dentro’ (Inside, 2023), um dos 130 filmes estrelados pelo magnífico ator Willem Dafoe – o Jesus, de ‘A última tentação de Cristo’, o Elias, em ‘Platoon’, ou o Duende Verde na retomada da franquia do Homem-Aranha no início dos anos 2000.

Dafoe, que é nascido no mesmo ano da minha mãe, 1955 – e eu sempre comparo as datas de nascimento dos astros de Hollywood com as pessoas da minha família, assim o diretor Clint Eastwood tem a mesma idade do que a minha vó Luiza, ambos são de 1930 e estão prestes a completar 94 anos – vive Nemo, um ladrão de arte que invada um senhor apartamento na poderosa Manhattan, onde vivem 1,6 milhão de pessoas e onde pulsa o coração financeiro dos EUA.

Entretanto, na sanha de levar telas caríssimas, alguma coisa dá errado e se vê preso numa imensidão de concreto, pouquíssimos recursos essenciais, mas alta tecnologia e rodeado do que há de mais sofisticado em termos de artes plásticas e arte contemporânea. Ornamentos que não têm quaisquer funcionalidades quando a realidade se impõe em sua forma mais crua, ou seja, quando a fome bate forte à boca do estômago e no desespero da mente. Assim, um aquário que beira a perfeição só servirá mesmo de tanque para extrair a proteína necessária para uma refeição cotidiana.

Todavia, ‘Dentro’ (Inside, 2023) não é o que parece, um filme sobre a sobrevivência ao estilo do reality-show ‘Largados e Pelados’ no ambiente urbano ao invés da hostilidade de uma natureza inóspita e remota. Seu enfoque é mais para um diálogo propositivo sobre a função da arte na nossa vida, a necessidade da criação, mas como uma forma de redenção contra a ansiedade de que um dia iremos, de fato, morrer, e não mais existir por aqui.

O mundo seguirá sem as nossas marcas, sem os nossos feitos e sem a gente mesmo. É por isso que Nemo – e Dafoe esteve na animação ‘Procurando Nemo’, de 2003, dando vida e voz a Gill, o líder do aquário salgado que recebe o filhote de peixe-palhaço capturado pelo dentista – o ladrão de arte recria, com os elementos que vai encontrando, uma torre ‘de Babel’.

Destrói uma cama, para utilizar as tiras do estrado como amarras de uma coluna ‘de Adriano’, e nesse processo de desconstruir para construir, os pés da cadeira se transforma numa chave-de-boca, a requintada banheira, em vaso sanitário acumulador de excremento e as paredes em telas para desenhos rupestres à carvão.

Penso, para finalizar, que a proposta do diretor grego Vasilis Katsoupis, de 47 anos, é levar o público a refletir sobre a definição de arte dita pelo seu conterrâneo, mas lá da Grécia Antiga, Aristóteles. O pensador definiu a arte como imitação da natureza humana e, Nemo, ou Dafoe, ao longo de 100 minutos deste longa, contorna com humanidade, com DNA, a fria e distante arte que iludia o requintado morador do imóvel, que vira cela.

Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’ (La Musetta Editoriais), ‘A próxima Colombina’ (Carlini & Caniato), ‘Contos do japim’ (Carlini & Caniato), ‘Vargas, um legado político’ (Carlini & Caniato), ‘Laurinda Frade, receitas da vida’ (Poiesis Editora) e das HQs ‘Radius’ (Mustache Comics/LM Comics), ‘Os canônicos’ (LM Comics) e ‘Onde nasce a Luz’ (Unimar – Universidade de Marília), ramonimprensa@gmail.com .

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