Os argumentos de nova biografia para redimir Yoko Ono do papel de vilã

Ao deixar para trás Yoko Ono e embarcar numa jornada de dezoito meses de esbórnia em Los Angeles, em 1973, John Lennon animou os fãs dos Beatles. Enfim, apressaram-se muitos, ele se livraria da esposa com fama de bruxa má — que não desgrudava do ídolo para nada, como atesta sua presença incômoda nas gravações dos álbuns finais da banda, Let It Be e Abbey Road. Invariavelmente apontada como vilã na separação dos Beatles, Yoko pareceu ter seu castigo ao ser trocada por outra oriental jovenzinha capaz de injetar ânimo em Lennon, sua assistente May Pang. Mas, como lembra o jornalista americano David Sheff em Yoko: Uma Biografia, novo relato sobre a vida da viúva mais famosa do rock, a história não foi bem assim. Yoko esteve o tempo todo no controle da situação. Cansada da infantilidade e das bebedeiras de Lennon, ela própria designou May como companhia inofensiva e ideal para despachar com o marido por uns tempos. Enquanto Lennon curtia seu longo “fim de semana perdido” em LA, Yoko tinha mais o que fazer: foi cuidar da carreira como artista plástica e das gravações de seus discos como cantora. Na hora em que Lennon voltou mansinho para casa, no início de 1975, não deu outra: os dois reataram e nunca mais se separaram.

Yoko Ono, em suma, tinha interesses pessoais e profissionais que iam muito além do mero papel de mulher de um dos maiores ídolos da música de todos os tempos. Na verdade, ficar à sombra de Lennon era algo que a incomodava profundamente. A partir dessa premissa, a nova biografia, que sai no Brasil na terça-feira 9 pela Editora Sextante, se propõe a iluminar facetas de Yoko que passam longe da mitologia pejorativa a seu respeito. “Ela ainda é vista como a megera que separou os Beatles e roubou Lennon de nós. Mas o fato é que a maioria das pessoas não conhece realmente sua história”, disse o autor a VEJA.

O livro de David Sheff soma-se a uma série de movimentos recentes que buscam resgatar a imagem de Yoko e valorizar seu legado como artista. Hoje aos 92 anos, ela está aposentada e leva uma vida reclusa numa fazenda no norte do estado de Nova York. Mas grandes retrospectivas de sua obra — como a que ocorreu em 2024 na Tate Modern, em Londres — vêm rodando o mundo com o intuito de celebrar seu pioneirismo na arte conceitual e feminista. Segundo essa narrativa renovada, a ideia de que ela teria tirado proveito da fama ao lado de um beatle é pura maledicência: Lennon é que teria ofuscado a carreira de uma das artistas plásticas mais inovadoras de seu tempo. O autor da nova biografia não esconde qual é seu lado na história. “O trabalho de Yoko ficou oculto na sombra de Lennon e foi obscurecido pela misoginia e pelo racismo escancarados dos fãs, da imprensa e dos outros beatles”, diz Sheff.

O viés positivo do livro é compreensível. Sheff conheceu o casal célebre em 1980, quando foi escalado pela Playboy americana para entrevistá-los. O pedido só foi aceito após um teste esquisito: Yoko requisitou os dados de nascimento de Sheff para checar suas “credenciais” à luz da numerologia e da astrologia. Ele passou na prova e conviveu com Yoko e Lennon por três semanas de 1980, poucos meses antes do assassinato do músico pelo maluco Mark D. Chapman em frente ao edifício Dakota, em Nova York. Foi a última entrevista de ambos juntos. Depois, Sheff tornou-se amigo de Yoko, colhendo os depoimentos que lastreiam o livro em várias conversas nas últimas décadas. O filho do casal, Sean Lennon — concebido logo após a rumorosa separação —, foi outra fonte essencial, dando-lhe acesso a documentos e pessoas próximas da família. Sheff jura que nenhum dos dois leu a biografia antes da publicação.

YOKO: UMA BIOGRAFIA, de David Sheff (tradução de Camila Fernandes; Sextante; 336 págs.; R$ 69,90 e R$ 44,99 em e-book)

Ao denunciar como a apreciação de sua obra foi nublada pelo sexismo e por preconceito com a origem asiática de Yoko, o biógrafo toca num ponto sensível — e real. Mesmo na liberal cena da contracultura dos anos 1960, ela era uma mulher entre homens brancos e custou a ser levada a sério. Numa das primeiras performances, nem foi creditada entre os criadores, mas apenas como a pessoa que cedera o apartamento onde o evento foi realizado. Só depois da morte de Lennon é que se reconheceu seu pioneirismo em expedientes típicos da arte contemporânea, como as obras com “instruções” para os espectadores interagirem. Na mais notável delas, Yoko subia ao palco com um vestido preto e oferecia uma tesoura para os espectadores cortarem sua roupa até deixá-la nua. Criações como uma frugal maçã transformada em escultura — na qual Lennon notoriamente deu uma mordida que irritou Yoko no primeiro encontro deles, em 1966 — prenunciaram a irreverência de obras atuais como a escultura Comedian, uma banana atada à parede com fita adesiva, leiloada pelo equivalente a 35 milhões de reais no ano passado. Na arte, ser precursor de algo assim não significa necessariamente ser bom, claro — e o mesmo vale para as estridentes investidas musicais de Yoko, que influenciaram do pós-­punk a Lady Gaga.

Apesar do viés simpático a tudo isso, a biografia expõe um lado sombrio pouco conhecido de Yoko. Nascida numa das mais ricas e influentes famílias do Japão, ela viveu na infância os horrores da Segunda Guerra — e é daí que veio sua militância pela paz, que culminou nos famosos protestos na cama com Lennon contra o conflito no Vietnã, nos anos 1970. Quando jovem, relata o autor, uma traumatizada Yoko tentou várias vezes tirar a própria vida.

Os fantasmas voltaram a atormentá-la no período em que ela e Lennon se afundaram no vício em heroína e atingiram o ápice após o assassinato do marido. Ela estava ao lado de Lennon no momento em que ele levou quatro tiros à queima-roupa na calçada do Dakota, onde o casal vivia, e entrou em paranoia brutal e depressão. Tinha medo de tudo e de todos, cercou-se de seguranças armados e acreditava que era espionada dentro de casa. Problemas reais reforçaram seu pesadelo, como o roubo de memorabilia de Lennon, incluindo seus diários, por um ex-­assistente da confiança do casal. Com sua queda para o misticismo, Yoko então se isolou de vez, recorrendo a médiuns e astrólogos, que decidiam as mínimas coisas que fazia e se uniram para manipulá-la e arrancar o máximo de dinheiro possível da viúva. A conversão da bruxa má em heroína não foi um processo simples.

Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2025, edição nº 2960

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *