O poeta que escolheu a cidade

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por Ramon Barbosa Franco

Em 15 de dezembro de 1941, uma segunda-feira, cinco padres subiram ao altar da igreja de São Jorge para uma missa póstuma, visando o encaminhamento da alma de um homem que, anos antes, havia transferido os direitos de uma obra literária para a construção daquele templo no Líbano. No domingo anterior, 7 de dezembro, a base naval a oeste de Honolulu, no Havaí, sofreu uma ofensiva surpresa da marinha imperial do Japão e, a partir dali, os EUA entraram de vez na 2ª Guerra Mundial.

O Brasil, país onde o libanês que doou o dinheiro de seu suor literário para erigir uma construção em homenagem ao Santo Guerreiro da Capadócia, só viveria o confronto na pele no ano seguinte, em 1942: quando a cobra fumou para os pracinhas.‘A Dunia Ua-Aúaliha’, que foi traduzida do árabe para o português com o título ‘A mutualidade do mundo e os horrores da guerra’, foi um dos livros que transformou Tannus Nahme Ayoub em um dos maiores escritores e poetas de seu tempo e de seu país, o Líbano.

Tannus assinava suas poesias com o pseudônimo de Bu-Nahme. Nascido em 15 de fevereiro de 1863, em Hammana, a menos de 30 quilômetros de Beirute, capital do Líbano, Tannus escolheu imigrar para o Brasil e aqui chegou no ano de 1911.

Primeiro se instalou em Santos, depois optou por Salto Grande, na região Sudoeste do Estado de São Paulo, perto da divisa com o Paraná. Dali, não se sabe ao certo, mas provavelmente por seu tino comercial, escolheu se mudar para Paraguaçu Paulista.Foi casado com Sabôha Saleb Ayoub, com quem teve os filhos Antônio, Brígida e Tamem. Antônio também se mudou para Paraguaçu Paulista.

Tamem ficou em Salto Grande e Brígida, em Ourinhos, já casada com Abílio Salomão. Ao falecer em Paraguaçu Paulista, em 26 de julho de 1941, Bu-Nahme já era viúvo e havia compartilhado com os cristãos do Líbano sua devoção a São Jorge.

Com os recursos financeiros que sua obra literária lhe proporcionou, os cristãos libaneses ergueram uma igreja em devoção a São Jorge, santo guerreiro nascido na Capadócia — hoje Turquia — no ano de 280.

Tinha 78 anos quando seu corpo foi sepultado na capela de São Jorge, no cemitério de Paraguaçu Paulista.Sua morte repercutiu não só no Líbano, sua terra natal, mas no Brasil — com notícia publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo — e também nos Estados Unidos, com matéria no periódico The Guidance, de Nova York.

A capela São Jorge, em Paraguaçu, traz uma foto de Bu-Nahme e na parede, versos de um de seus poemas. Ele era especialista em compor sonetos ‘cacid’.

De grande relevância para a literatura libanesa, sua trajetória carece de uma obra biográfica, justamente para que se dimensione o quanto sua produção literária teve relevância para desvelar um período obscuro que o mundo tinha vivido 25 anos antes da chegada de uma nova guerra mundial.

O Brasil também lhe inspirou muitos poemas. Certamente, os anos em Paraguaçu Paulista lhe proporcionaram produção literária, contudo, o que mais realça nesta sua jornada é que este homem, que amava o Líbano e as letras árabes, escolheu ficar em uma terra estrangeira até o último segundo de sua existência.

Por isso, para mim, Tannus Nahme Ayoub, o Bu-Nahme, é o poeta que escolheu a cidade, e não o inverso.

Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’, ‘A próxima Colombina’, ‘Contos do Japim’, ‘Vargas, um legado político’, ‘Laurinda Frade, receitas da Vida’, ‘Quatro patas, a história de Pituco’, ‘Nhô Pai, poeta de Beijinho Doce’, ‘Dias de pães ázimos’ e das HQs ‘Radius’, ‘Os canônicos’ e ‘Onde nasce a luz’, ramonimprensa@gmail.com

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