A cena é assustadora e angustiante. Um jogador de futebol cai em campo e precisa ser reanimado o quanto antes, em um esforço que mobiliza paramédicos e equipe técnica, além de assustar a torcida no estádio e quem está em casa. Nem sempre, porém, o desfecho é bom. Episódios desse tipo, que não raro ocupam o noticiário, são a face mais visível e chocante de um fenômeno conhecido como morte súbita, quando uma parada cardíaca abrupta se manifesta, em geral em um indivíduo jovem. É situação gravíssima que, obviamente, não afeta só atletas. Nela, o funcionamento do coração é interrompido e o sujeito perde os sentidos. Cada minuto sem ações para resgatar a vítima significa 10% a menos de chances de sobrevivência. Não à toa, apenas uma entre dez pessoas que passam por isso consegue resistir. Acontece que o ataque repentino, que atinge cerca de 2 milhões de homens e mulheres por ano, em todo o mundo, pode não ser tão súbito nem tão letal como se pensava. É o que mostram novas pesquisas com o potencial de literalmente salvar vidas.

O estudo mais robusto nessa seara, um mapeamento que durou catorze anos, apontou mais de cinquenta fatores de risco modificáveis para evitar o colapso cardíaco. Em paralelo, em nome da segurança dos atletas, a Fifa passa a adotar na próxima Copa do Mundo Sub-17 de futebol masculino, em novembro, no Catar, um novo consenso de triagem e prevenção do problema. A ideia é não dar chance ao azar e investigar situações do estilo de vida e doenças que catapultam o risco de morte súbita — entre elas, arritmias severas e distúrbios nas válvulas do coração que podem ficar anos sem emitir sintomas. Nesse sentido, um grande passo foi dado com a publicação de uma análise pioneira em cima de 125 aspectos da saúde capazes de ajudar a prenunciar a maior propensão ao ataque no peito — 56 deles demonstraram um elo com o desfecho fatal. O trabalho, realizado com base em informações de mais de 500 000 cidadãos cadastrados no banco de dados de saúde pública do governo britânico, revela que condições em alta, como obesidade, sedentarismo, alimentação pobre em frutas e verduras, diabetes e depressão, sinalizam um maior limiar de perigo.
O que impressiona entre os achados da pesquisa é o possível efeito de mitigar esses fatores no dia a dia. Mudanças graduais nos hábitos pouco saudáveis, cortando um terço deles, seriam capazes de evitar 40% dos eventos. Aderir a uma transformação radical no cotidiano chegaria ao índice de 63%. “Os ajustes no estilo de vida se mostraram os mais impactantes na prevenção”, diz o pesquisador Huihuan Luo, da Universidade Fudan, na China, um dos autores do mapeamento. Em editorial sobre a relevância da pesquisa, publicado no periódico da associação médica canadense, especialistas destacaram que, “para alcançar reduções drásticas no imenso fardo que a parada cardíaca súbita impõe ao sistema de saúde, a narrativa deve se estender além da intervenção aguda para uma estratégia mais ampla entre toda a população que priorize a prevenção primária”. Ou seja, não adianta investir apenas nos primeiros socorros. É crucial atuar com antecedência.
Assim, a nova missão dos médicos é engajar os pacientes em consultas e check-ups regulares. Até porque, se nada for feito, eles podem conspirar para um efeito em cadeia. “Quem convive com obesidade e é sedentário tem duas a três vezes mais chances de sofrer morte súbita do que o fisicamente ativo”, diz um dos maiores especialistas do mundo em técnicas de ressuscitação, o cardiologista Sergio Timerman, diretor do Centro de Parada Cardíaca do Instituto do Coração, o InCor, na capital paulista. Realmente, não dá para bobear. Timerman frisa que a morte súbita é uma das situações mais traiçoeiras que existem na medicina. “O quadro em si é silencioso e o primeiro sintoma muitas vezes é o óbito”, afirma.
Sob esse raciocínio, fica nítida a importância de esmiuçar condições que podem estar ocultas e conhecer o histórico familiar para fechar o cerco. “Pessoas com distúrbios genéticos precisam fazer o estudo desses fatores familiares e, se houver diabetes, hipertensão, colesterol alto ou tabagismo, temos de agir para não correr riscos”, diz Timerman. O ponto é que, apesar desses cuidados, geralmente associados ao avançar da idade, a morte súbita comumente se manifesta entre pessoas jovens e ativas, inclusive atletas de alta performance. Um dos casos mais recentes foi o do zagueiro uruguaio Juan Izquierdo, morto aos 27 anos, em agosto do ano passado, após uma parada cardiorrespiratória por arritmia durante uma partida entre o Club Nacional de Football e o São Paulo no estádio MorumBIS. Izquierdo chegou a ser socorrido e levado a um hospital, mas teve o diagnóstico de morte cerebral. “Se o atleta possui uma anomalia desconhecida no músculo cardíaco, pode ter uma complicação quando é levado ao seu limite”, explica o médico do InCor.
É por isso que, no ambiente esportivo, as diretrizes têm orientado à realização de rastreamentos mais precoces e rigorosos. Especialistas de dezesseis países se reuniram para avaliar as evidências mais atualizadas sobre a parada cardíaca no futebol, a principal causa médica de morte entre jogadores, e determinaram que a avaliação clínica deve ser iniciada aos 12 anos, com repetição do exame de eletrocardiograma a cada dois a quatro anos até que o atleta complete os 18. “Sabemos que o esporte pode ser um gatilho para doenças genéticas que ainda não se manifestaram e são desencadeadas por estresse físico e emocional, principalmente em competições”, diz a cardiologista Clea Colombo, uma das autoras do documento. A idade de corte foi definida a partir dos dados obtidos na análise da literatura médica. “Vimos que a mortalidade em jovens e atletas começa a aumentar a partir dos 12 anos. Por isso a avaliação deve ser feita por um médico com experiência na área, capaz de flagrar até alterações sutis”, detalha a especialista em medicina do esporte e professora da Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas, São Paulo, a única profissional latino-americana a integrar o consenso global.

O socorro imediato também foi contemplado pela nova orientação, ecoando medidas que se estendem além dos gramados. A atuação, sem demora, envolve a ressuscitação cardiopulmonar com massagem cardíaca e o uso do desfibrilador externo automático, equipamento que avalia rapidamente o ritmo cardíaco e emite um alerta caso seja necessário aplicar um choque elétrico para restabelecer os batimentos. “Esse dispositivo portátil precisa estar em até três minutos no campo e não se deve retirar o jogador de lá até ele estar estabilizado”, diz Colombo. A combinação dessas táticas pode levar a uma taxa de sucesso da ordem de 85%. “Quando salvamos alguém nessas condições, temos a chamada morte súbita abortada”, completa a especialista. O tempo, contudo, faz toda a diferença. Dez minutos depois da pane no coração, a chance de reverter o quadro já é considerada pequena.
Por essas e outras, os experts acreditam que as informações e orientações precisam chegar à população geral, inclusive porque parte das ações pode ser tomada em casa ou em locais públicos. A massagem cardíaca, com compressões ritmadas no peito, pode ser realizada por qualquer pessoa, enquanto a ambulância não chega. “Se as pessoas não estiverem conscientes e engajadas nisso, não adianta ter o melhor hospital”, reforça Timerman, que cita as campanhas internacionais atreladas a músicas populares nas manobras de salvamento. É possível ritmar de 100 a 120 batidas por minuto no peito no compasso de canções como Stayin’ Alive, do grupo Bee Gees, ou hits de Lady Gaga, Beyoncé, Bad Bunny e Mariah Carey, segundo a playlist elaborada pela Associação Americana do Coração.

O desafio, no entanto, é chegar mais cedo àquele contingente de pessoas, inclusive adolescentes, que estão mais vulneráveis sem saber e acreditam estar imunes. E, nesse contexto, uma bateria de exames pode sugerir um plano de ação capaz de conciliar os sonhos e projetos pessoais com a segurança da saúde. “A depender do caso, podemos orientar o indivíduo a evitar práticas esportivas de grande intensidade”, ilustra o cardiologista Weimar Barroso, professor da Universidade Federal de Goiás. O fato é que, em casa ou no campo esportivo, conhecer os perigos que rondam o coração e intervir no que for possível ganhou uma dimensão ainda mais urgente. Afinal, a morte já não é tão súbita, e, felizmente, é possível escapar dessa sina.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2025, edição nº 2967















