Logo na entrada da recém-inaugurada fábrica da chinesa GWM em Iracemápolis, no interior de São Paulo, acumulam-se enormes pilhas de peças trazidas da Ásia. Em poucas horas, elas serão transformadas em modelos como o SUV Haval H6. Depois de desembaladas, seguem para a linha de soldagem, onde cada carroceria leva 145 minutos para ganhar forma. Em seguida, passam pelo controle de qualidade, entram em modernas cabines de pintura e recebem os componentes finais, como motores, baterias, bancos e acabamentos. O espaço, que já abrigou a Mercedes, foi reestruturado para receber novos equipamentos, incluindo robôs, e hoje opera com 55% de automação e 340 funcionários diretos. Pouco antes, a também chinesa BYD inaugurou em Camaçari, na Bahia, sua própria unidade, instalada no antigo complexo da Ford. De lá sairão modelos elétricos, como o Dolphin Mini, líder de vendas na categoria no Brasil, e híbridos, como o SUV Song Pro. Juntas, as duas fábricas simbolizam a nova ofensiva chinesa no setor automotivo brasileiro — um movimento avassalador que, em ritmo acelerado, ocupa os espaços deixados por montadoras tradicionais e reposiciona toda a cadeia produtiva de carros no país.
A inauguração das fábricas confirma uma realidade cada vez mais visível: os carros chineses deixaram de ser exceção para se tornar presença frequente nas ruas brasileiras. No primeiro semestre de 2025, 134 000 veículos vindos da China chegaram ao país — cinco anos atrás, em 2020, o volume era de 20 000, em doze meses. O número impressiona ainda mais quando se traduz em proporção: de cada dez automóveis importados, seis são chineses, que já ocupam o topo de vendas entre os automóveis elétricos e híbridos.
Durante muito tempo, a presença chinesa no mercado automotivo brasileiro foi discreta. Algumas marcas chegaram, mas não resistiram, como a Lifan. Outras conseguiram ficar por mais tempo, caso da Chery — que se estabeleceu em parceria com a Caoa e produziu 74 000 carros aqui em 2024 — e da JAC, pioneiras no esforço de mudar a imagem dos veículos chineses, antes associados a produtos de baixa qualidade e tecnologia limitada. A verdadeira guinada, no entanto, ocorreu a partir de 2023, com a chegada de dois gigantes globais: a BYD, hoje a maior fabricante de veículos elétricos do mundo, à frente da americana Tesla, e a GWM. “As duas empresas trouxeram produtos competitivos, vieram determinadas a incomodar e conseguiram”, diz o consultor automotivo Milad Kalume Neto.
Desde o ano passado, a chegada das montadoras chinesas ao Brasil ganhou velocidade inédita. Omoda e Jaecoo, ambas do grupo Chery, GAC, outra das fortalezas globais do setor, e Geely, dona da Volvo, desembarcaram com veículos cheios de tecnologia e preços agressivos. “Queremos fazer a diferença na indústria automotiva brasileira”, afirmou Alex Zhou, presidente da GAC Brasil, na apresentação da empresa. A marca já sinalizou interesse em produzir seus modelos por aqui. Outras companhias também confirmaram planos de disputar o mercado brasileiro, entre elas a Saic, a Changan e a Leapmotor, controlada pela Stellantis, dona de marcas tradicionais como Fiat, Jeep, Ram, Peugeot e Citroën.
Nem todas as montadoras chinesas produzem de fato seus carros no Brasil. Muitas ainda trazem os veículos prontos, direto da China, em navios. Mesmo as fábricas recém-inauguradas operam em regimes de montagem parcial, conhecidos pelas siglas SKD (semidesmontado) e CKD (completamente desmontado). A unidade da BYD, na Bahia, por exemplo, recebe os carros no sistema SKD, com os veículos parcialmente desmontados para serem finalizados aqui. Já a GWM adota o modelo CKD: as peças chegam totalmente separadas, como num kit de Lego, e são montadas do zero em Iracemápolis.
O método não é novidade. Outras montadoras já usaram, e ainda usam, esse tipo de operação. Trata-se de uma prática recorrente para quem inicia atividades em novos mercados. Para que um veículo seja considerado nacional, precisa atingir um percentual mínimo de peças e mão de obra locais. Esse índice varia conforme o modelo, sendo o mínimo de 55%, mas nenhum automóvel produzido no Brasil é 100% feito com peças nacionais.
A proliferação acelerada desse arranjo industrial, porém, acendeu o alerta da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, que pressionou pela antecipação da alíquota máxima de 35% de imposto de importação para carros elétricos e híbridos, tanto montados quanto desmontados. Hoje, esses veículos já pagam tarifas significativas — 25% para elétricos a bateria, 28% para híbridos plug-in e 30% para híbridos convencionais —, mas ainda abaixo da carga de 35%, prevista para vigorar a partir de julho de 2026. Em reunião extraordinária, o Comitê Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior atendeu parcialmente ao pleito: decidiu que os kits SKD e CKD passarão a pagar a alíquota cheia já em janeiro de 2027, um ano antes do previsto, enquanto os veículos importados prontos continuarão com a cobrança integral programada para julho de 2026. Diante desse cenário, as montadoras concorrentes tentam reagir acelerando o lançamento de modelos com potencial para fazer frente aos asiáticos.
O avanço das montadoras chinesas revela, de forma inequívoca, a velocidade com que o mercado automotivo global está se transformando. Nos veículos elétricos, a China já abriu larga vantagem sobre a concorrência. Um exemplo simbólico veio há alguns dias, quando o esportivo Yangwang U9, da BYD, quebrou o recorde mundial de velocidade para carros elétricos ao atingir 470 km/h. Mas a disputa não se limita ao segmento elétrico: mesmo nos modelos a combustão, a competição é intensa. A GWM anunciou a produção local de veículos do tipo e planeja expandir sua atuação em toda a América Latina, tendo o Brasil como centro produtivo e aproveitando os benefícios do acordo do Mercosul.
De fato, os investimentos são feitos sempre de olho em um horizonte mais largo, como reza a cultura chinesa. Durante a inauguração da fábrica em Iracemápolis, no último dia 15, o presidente da GWM International, Parker Shi, contou que a unidade recém-inaugurada, com capacidade para montar 50 000 carros por ano, é apenas o começo: “Ela não vai atender ao grande plano da GWM. O objetivo é alcançar entre 250 000 e 300 000 veículos produzidos na região”. A invasão chinesa não é passageira: é um movimento que muda a lógica do mercado e obriga toda a indústria a se reinventar.
Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2025, edição nº 2959