No primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, a monumental obra do francês Marcel Proust (1871-1922), o narrador leva à boca uma madeleine que havia recém-mergulhado em uma xícara de chá e é tomado por memórias da infância, como as ternas tardes junto à avó. “No mesmo instante em que aquele gole, envolto em migalhas de bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”, escreveu Proust, dando contornos à emoção que a delicada iguaria em forma de concha, tão típica da pâtisserie francesa, lhe provocava. Acabou-se cunhando mais tarde a expressão “madeleine de Proust”, o fenômeno que justamente trata de como um sabor (ou um cheiro, um som) pode transportar a mente a certo momento, uma viagem que vai da boca ao cérebro revolvendo fragmentos do passado cercados de significado. O assunto intriga cientistas de áreas variadas, que já examinaram desde as engrenagens ativadas no cérebro quando os indivíduos estão à mesa até o papel do alimento como agregador de pessoas e povos.
Um novo passo nessa área do saber foi dado agora, após uma recente pesquisa que investigou a questão sob um curioso prisma do comportamento humano. Os pesquisadores das universidades de Birmingham, no Reino Unido, e Munique, na Alemanha, se concentraram em um debate que anda muito em voga nos dias de hoje: a imigração, assunto que faz ferver o caldeirão da polarização e dá gás a movimentos à direita no espectro ideológico, contrários à entrada de estrangeiros em seus países. Após ouvir mais de 1 000 entrevistados para tentar estabelecer um elo entre suas rotinas alimentares e seus posicionamentos em relação ao tema, veio uma conclusão que agitou a academia por abrir uma porta aos estudos do paladar: a turma que se expõe a diferentes culinárias — indiana, turca, tailandesa, entre outras citadas — é claramente mais propensa a abraçar a diversidade cultural e apoiar a imigração.
À primeira vista, pode soar uma constatação óbvia: quem já é aberto a degustar o menu de distintos países, e o faz com frequência, teria naturalmente a cabeça mais inclinada a conviver com nacionalidades diversas. Só que a pesquisa sustenta que o que vai ao prato não é apenas um indicador, mas um indutor de um modo de sentir e pensar essa questão tão candente. Tanto é assim que também o grupo com pendor para o conservadorismo tende fortemente a mudar de opinião ao navegar por sabores de terras longínquas, como se aquela bem-vinda sensação ajudasse a virar uma chavinha. O resultado, segundo a pesquisa, é uma maior aceitação aos estrangeiros e uma visível redução nas intenções de voto em políticos linha-dura, afeitos à ideia de muros para barrar forasteiros. “O paladar é capaz de despertar sentimentos como empatia e curiosidade pelo próximo, criando familiaridade sem exigir grandes debates e semeando a tolerância de forma espontânea”, disse a VEJA o sociólogo Rodolfo Leyva, autor do estudo.

Uma parte da história tem suas raízes plantadas no cérebro, onde se verifica uma frenética movimentação quando as papilas gustativas são agraciadas por um bom tempero. As vias cerebrais que processam o paladar têm ligação direta com a área responsável pelas emoções e, sabidamente, sabores inesperados põem para funcionar as regiões mais associadas ao prazer e à empatia. Além disso, o paladar se conecta sem escalas ao hipocampo, o local da memória duradoura, deixando em camadas fundas impressões de longo prazo. “Traduzindo à vida das pessoas, provar algo novo e prazeroso ativa o sistema de recompensa, reforça memórias afetivas e desperta a vontade de repetir a experiência, o que contribui para uma abertura da mente”, afirma o neurologista Matheus Gomes Ferreira.
O célebre sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) já descrevia a alimentação como algo muito além de um gesto biológico — para ele, trata-se de um rito social e simbólico, capaz de expressar identidades e de agregar povos. “Ao provar o novo, você desafia hábitos arraigados, deslocando a fronteira entre o eu e o outro”, diz o professor de sociologia Jamacy Souza, da Universidade Federal da Bahia. Conhecer um sabor de um canto diferente do planeta no ambiente de um restaurante, convivendo com gente que ali se junta em busca de memórias e acolhimento longe de casa, é outro fator que pesa em favor de um olhar mais humanizado sobre os imigrantes, de acordo com o estudo de britânicos e alemães. “Quando experiências positivas dessa natureza se repetem, a distância psicológica entre grupos diminui”, afirma o sociólogo Leyva. Por isso, a pesquisa termina sugerindo o contato com cozinhas distintas ainda na infância, para fomentar desde cedo o gosto pelo desconhecido. Está aí uma boa receita para um mundo mais tolerante.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2025, edição nº 2967













