O canto melodioso do trinca-ferro é celebrado como joia da natureza, de beleza inigualável, o solfejo a brotar da siringe. A graça dos filhotes de ararinhas-azuis foi exposta à luz do dia, como alerta contra a bandidagem dos gatunos, pelo sucesso do desenho animado Rio, de 2011. A arara-azul-de-lear, variante maior e rara, chega a ser negociada a 60 000 dólares no submundo das transações feitas no lado escuro da internet. Os pássaros, hoje, são a vitrine de um canto desesperado, em tragédia que não tem recebido o devido destaque nos fóruns de preparação da COP30, em Belém: o tráfico de animais silvestres, engrenagem criminosa e sofisticada na qual o Brasil tem triste e inaceitável relevo.
Dados recentemente divulgados conferem dimensão ao estrago: saem de nossas matas 38 milhões de bichos todos os anos, o equivalente a 15% do mercado internacional, segundo a ONU. O país fica atrás apenas de Vietnã e China. É vergonhoso. O esquema inclui caçadores, receptadores, falsificadores, intermediários e comerciantes em redes sociais. Em setembro, depois de um ano de investigações, a Operação São Francisco (referência ao santo católico protetor dos animais) cumpriu 270 mandados de busca e apreensão, que resultaram na prisão de 45 pessoas e no resgate de 700 animais, o maior da história. Os criminosos atuavam em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. “De cada dez animais traficados, apenas um sobrevive”, diz Helena Maria Lobo, professora da Faculdade de Direito da USP, especializada em meio ambiente. A porcentagem reflete a crueldade a que os bichos são submetidos.
É triste saber da participação de autoridades, que deveriam zelar contra o sequestro e foram coniventes. A Operação Defaunação, da Polícia Federal, deflagrada em março do ano passado, e que ainda agora ecoa, identificou a participação de um bombeiro militar, de servidores do Instituto Estadual do Ambiente, do Rio de Janeiro, e do Comando de Policiamento Ambiental, que falsificava a documentação de animais ameaçados de extinção. A investigação prossegue. Outros animais despontam no melancólico rol, como rãs coloridas e macacos (veja no quadro). Muitos são transportados ainda filhotes, abarrotados dentro de malas comuns de viagem — sem ter como respirar, a maioria morre no caminho.
A PF aperta o cerco, mas falta estrutura para fiscalização. As punições, consideradas brandas — de no máximo um ano de prisão e multa de até 5 000 reais, em caso de animal em extinção —, não inibem o crime. “A saída é trabalhar na conscientização do consumidor”, diz Helena. É passo fundamental, mas insuficiente. O canto não basta, é preciso gritar.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965