por Ramon Barbosa Franco
Esses dias atrás uma onça-parda apareceu no quintal de uma casa na zona sul de Marília. Lembro que, anos atrás, ao fazer uma reportagem sobre as principais reivindicações de urbanização daquele trecho da cidade, um morador me confidenciou ter avistado uma onça rondando por lá. A presença de uma suçuarana trouxe-me à tona o conto de Guimarães Rosa, “Meu Tio o Iauaretê”, narrativa escrita em 1961 pelo autor de “Grande Sertão: Veredas”, mas publicada postumamente em 1967. A fabulosa história de um caçador de onças que vive isolado e detalha cada nuance de como se portar tanto numa caçada quanto na negaça – a forma ardilosa, sutil e até mesmo sedutora para atrair a presa na empreitada – é um mergulho na mente do homem e da fera. Guimarães faleceu em 19 de novembro de 1967, menos de uma semana após tomar posse na ABL. Naquele ano, Rosa chegou a ser cotado para o Nobel de Literatura, período em que as caçadas foram proibidas em todo o Brasil. O ator Lima Duarte fez uma interpretação antológica deste conto para a TV Cultura em 1986, cuja gravação está disponível no YouTube. [https://youtu.be/uyRJJKeTdmQ?si=4OOoFd_zYXiornsG]
Ouvi muitas histórias de caçadas, principalmente de três pessoas que marcaram minha infância. Uma delas, que já nos deixou, foi minha principal inspiração para o conto “Nosso Homem na África”, publicado em 2010, no livro “Contos do Japim” (Carlini & Caniato, Cuiabá). Essa pessoa, inclusive, morou por anos na Costa do Marfim, na África, e lá fez caçadas em safáris. Em “A Próxima Colombina” (Carlini & Caniato, Cuiabá – 2014 e 2019), emprestei o nome de um perdigueiro de um dos meus tios para um dos personagens, o Barão. Diziam que o Barão era um exímio farejador de codornas. Ele vivia nos fundos de uma serralheria e sua vasilha de comida era um capacete usado. Tenho um tio que é um excelente pescador e, numa represa da nossa região, pescou um pintado! Ele registrou em vídeo a batalha que travou, trazendo-me à memória outro grande clássico, “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway – norte-americano que conquistou o Nobel na década de 1950.
Certa vez, esse meu tio pescador chegou a ser “sondado” por uma suçuarana. Sempre no mesmo horário, “na boca da noite” – como dizem os mateiros –, o “gatão” se posicionava a uma determinada distância. Ficava ali negaceando o tio-pescador, que precisou, rapidamente, mudar de posto para não ser uma das vítimas do leão-baio – nome deste tipo de onça no sul do Brasil. Há 15 anos, o repórter fotográfico Alexandre de Souza e eu realizamos uma reportagem sobre o retorno das onças à região de Marília, inclusive com registro de suas pegadas em Avencas. Mia Couto, com quem conversei sobre Marília em 2022, completou 70 anos e acompanhei um vídeo em que ele conta uma missão que realizou ao lado de caçadores de seu país, Moçambique. Neste vídeo, o autor de “Terra Sonâmbula” revela o quanto caçar e escrever têm em comum.
E têm, porque eu mesmo – além de escrever sobre caçadas em algumas de minhas ficções – associei, na lida de escritor, uma frase de Guimarães em “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”: “sapo pula por precisão, não por boniteza”. Digo isso porque a escrita me dá o pão de cada dia, ajuda-me a enfrentar os desafios e escrevo não por “likes” no Insta, embora goste de recebê-los, como todo internauta ativo na rede. Escrevo, mesmo, por precisão e amor, num misto das duas coisas sempre. O pulo do sapo é tanto para o caçador quanto para não ser presa de caça. Leitura, histórias e lembranças são tão essenciais em nossa formação. Penso que não saberia viver de outra forma senão ao lado delas.
Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’, ‘A próxima Colombina’, ‘Contos do Japim’, ‘Vargas, um legado político’, ‘Laurinda Frade, receitas da Vida’, ‘Quatro patas, a história de Pituco’, ‘Nhô Pai, poeta de Beijinho Doce’, ‘Dias de pães ázimos’ e das HQs ‘Radius’, ‘Os canônicos’ e ‘Onde nasce a luz’, ramonimprensa@gmail.com













