Agora é com o papai: eles já aspiram mais a ter filhos do que as mulheres, diz pesquisa

As últimas décadas têm sido particularmente revolucionárias em relação ao papel ocupado por homens e mulheres na sociedade — a começar por elas, que marcharam firme a partir dos anos 1960 para ganhar voz e conquistaram a duras penas direitos nos quais hoje quase ninguém mexe e, se o faz, precisa se explicar. Um deles é acessar métodos contraceptivos e se sentir livres para não ter filhos, ora porque a carreira lhes suga tempo em demasia, ora por imaginar para si um enredo fincado em uma ideia distinta de família. Pois enquanto a ala feminina foi se entendendo sob a moldura da modernidade, eles se puseram a refletir sobre o seu lugar no mundo, dissolvendo conceitos preestabelecidos do que seria a masculinidade — movimento doloroso para uma boa parcela, porém muito bem-vindo sob o ângulo do tão almejado equilíbrio entre os gêneros.

É justamente em meio à busca de uma nova identidade que a população masculina, sobretudo a fatia egressa da banda ocidental do planeta, revê o olhar sobre a paternidade. Pesquisa após pesquisa, eram sempre elas, as mulheres, que expressavam maior desejo em aumentar a família (este o termo em voga até outro dia). Aí, de uma década para cá, foi-se observando duas curvas que caminhavam em direções opostas — muitas das representantes do pelotão feminino já não queriam mais ter crianças, e isso foi se aprofundando, ao passo que no lado masculino tal ambição só crescia.

EM BOA COMPANHIA - O instinto paterno bateu forte, e o comediante Jacques Vanier, 33, decidiu recorrer à inseminação artificial com a ajuda de uma prima, que gestou o pequeno Luke, hoje com 1 ano. “Me empenho todos os dias em ser presente e amoroso”, diz ele, que engrossa a tendência dos pais solo.
EM BOA COMPANHIA – O instinto paterno bateu forte, e o comediante Jacques Vanier, 33, decidiu recorrer à inseminação artificial com a ajuda de uma prima, que gestou o pequeno Luke, hoje com 1 ano. “Me empenho todos os dias em ser presente e amoroso”, diz ele, que engrossa a tendência dos pais solo. (Jefferson Caetano/.)

Veio então o recém-divulgado levantamento do Pew Research Center, que examinou uma ampla amostra entre 18 e 34 anos, nos Estados Unidos, e pintou um retrato surpreendente de mais uma virada contemporânea: se menos da metade das mulheres (45%) vislumbra hoje um horizonte com crianças, a porção masculina é de 58% — uma distância de 13 pontos que ajuda a delinear um fenômeno bem atual. Segundo especialistas brasileiros, o fenômeno se repete por aqui. “A paternidade tem servido como uma espécie de farol para homens em pleno processo de mudança, uma tendência global que deve aparecer em cada vez mais estudos”, afirma o sociólogo Tiago Gayet, da USP. Um exemplo da nova mentalidade é o educador físico Christian Faccio, 33 anos, de São Paulo. “Por mim, teria uns cinco filhos e deixaria até o emprego para cuidar das crianças, que é um trabalho dificílimo”, reconhece ele, que cutuca o tema com a noiva, hoje focada na carreira e para quem a maternidade nunca foi prioridade.

Variados termômetros mostram o quanto os pais de agora se distinguem dos patriarcas do passado, engessados em um figurino pouco afeito a demonstrações mais abertas de afeto. Meio século de história foi o suficiente para que, mundo afora, os homens triplicassem a janela de tempo ao lado de seus bebês, estando ali tanto naquelas horas de altas descobertas, como no calvário das noites maldormidas. Se o casal se separa, eles, aí também, se fazem mais presentes do que seus próprios pais — no exíguo período entre 2014 e 2022, subiu em 40% o número dos que racham meio a meio as responsabilidades com a criançada, engrossando o rol dos brasileiros adeptos da guarda compartilhada.

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“NÃO VEJO A HORA” - O professor de educação física Christian Faccio, 33, é quem puxa conversa com a noiva, a relações-públicas Isabela Guasco, 30, sobre terem filhos. Ela está agora mais focada na carreira, mas ele gostaria que acontecesse logo. “Por mim, deixaria o emprego para cuidar das crianças”, fala.
“NÃO VEJO A HORA” – O professor de educação física Christian Faccio, 33, é quem puxa conversa com a noiva, a relações-públicas Isabela Guasco, 30, sobre terem filhos. Ela está agora mais focada na carreira, mas ele gostaria que acontecesse logo. “Por mim, deixaria o emprego para cuidar das crianças”, fala. (./Arquivo pessoal)

Sob o prisma feminino, é legítimo e compreensível que elas queiram postergar a gravidez ou, quem sabe, nunca experimentá-la — uma guinada, aliás, que vem transformando a demografia do globo em velocidade frenética. Por mais que a evolução seja palpável na divisão das tarefas, o peso maior ainda recai sobre suas costas — tanto assim que uma de cada quatro deixa o trabalho no primeiro ano do bebê e 15% continuam afastadas após uma década, de acordo com uma pesquisa da London School of Economics. “O progresso neste campo ainda não livrou as mulheres de arcarem com o mais árduo da rotina dos filhos”, ressalta a cientista social Clara Maria Araújo, da Uerj. Casos como o do arquiteto paulista Thiago Lopes, 42 anos, são raridade. “Sempre sou o único homem no consultório médico e em reuniões de escola”, conta o pai de uma prole de quatro, entre 3 e 7 anos, sozinho no batente da criação deles desde que a esposa faleceu, em 2023.

É verdade que políticas públicas poderiam fazer girar com maior destreza as engrenagens da igualdade de gênero, como ocorre na Suécia, por exemplo: ali, o casal tem ao todo 480 dias fora do trabalho para cuidar do recém-nascido, não importa se o pai ou a mãe. Muitos países já estendem a licença-paternidade, assunto em pauta no Brasil, onde um projeto de lei tramita no Congresso com a ideia de ampliar o tempo paterno junto ao bebê. Bem longe dos gabinetes, os especialistas veem expandir até uma turma formada por pais solo, que embarcam em produção independente empregando métodos diversos oferecidos pela ciência. “Meu pai não foi uma figura de carinho e proximidade, e procuro ser o oposto para meu filho”, diz o comediante goiano Jacques Vanier, 33 anos, sobre o pequeno Luke, de 1, fruto de inseminação artificial. “Não há estatísticas, mas sabemos que o grupo dos que encaram a paternidade sozinhos está crescendo”, diz a psicóloga britânica Susan Golombok, da Universidade de Cambridge. Os aspirantes à paternidade não compõem, claro, um grupo de discurso uniforme. “Para alguns, o abalo do mundo tal qual conheciam trouxe o plano de ter filhos como uma espécie de retorno ao velho roteiro”, pondera o antropólogo Bernardo Conde. Mas, como a roda da história é irrefreável, o espaço para os que não trocam fralda diminui a cada dia — e isso é bom para todos.

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2025, edição nº 2968

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