Robôs no parquinho: brinquedos inteligentes levantam dúvidas sobre efeitos na infância

Não deu outra, e era esperado que assim fosse. Brinquedos equipados com inteligência artificial (IA) deixaram de ser curiosidade de feira tecnológica para virar hábito de quarto infantil na China. Bichos de pelúcia que “falam”, pingentes que dão voz a personagens e robôs de mesa que jogam xadrez com crianças fazem parte de um catálogo em expansão acelerada. A engrenagem que puxa a onda combina três forças conhecidas do país: o investimento público em inovação (ainda que na marra, com a mão pesada do Estado), uma cultura que trata a educação como escada social desde cedo e o avanço dos modelos locais de linguagem ancorados em algoritmos. O resultado: “companheiros digitais” que prometem ensinar, conversar e até reconhecer emoções — uma evolução evidente em relação a Rosie, a funcionária doméstica dos Jetsons dos anos 1960 e 1970, que supunha um amanhã que agora chegou. A promessa empolga famílias e empresas, mas acende, com igual intensidade, o alerta de educadores.

MATURIDADE - Um cuidador virtual e seu paciente: tecnologia na geriatria
MATURIDADE - Um cuidador virtual e seu paciente: tecnologia na geriatria (Wu Junyi/CNS/VCG/Getty Images)

Startups exibem números vistosos; segundo projeções do setor, o mercado pode ultrapassar o equivalente a cerca de 75 bilhões de reais até 2030. A multiplicação das opções criou um ecossistema em que o aprendizado e o afeto viraram produto. Um dos campeões de venda é o BubblePal, um pequeno pingente que transforma qualquer pelúcia em interlocutor falante, com 39 vozes diferentes que dão “vida” a personagens da Disney e até heróis chineses. Outro exemplo é o FoloToy, que permite aos pais gravar a própria voz no brinquedo, criando uma espécie de “versão familiar” da IA. O charme inicial, no entanto, costuma se esgotar rápido. Muitos pais relatam que as respostas são longas, o reconhecimento de voz falha e o interesse das crianças evapora em dias.

No marketing, os autômatos são apresentados como “ferramentas educativas”. Na sala de aula e no quintal, porém, a conta é mais complexa. “Habilidades como empatia, resolução de conflitos e generosidade só podem ser aprendidas na arena complexa das interações humanas”, afirma Daniela Pannuti, diretora da divisão primária da Avenues São Paulo, escola internacional que também mantém um campus na China. A ressalva toca o coração da infância: brincar é processo, não produto. O desenvolvimento não floresce no atalho da resposta pronta e, sim, no caminho entre formular uma hipótese, errar, tentar de novo, negociar regras com colegas, ler expressões e lidar com frustrações reais. Quando a criança passa a “brincar” com um outro previsível, mesmo que muito sofisticado, há o perigo de treinar o convívio sem contradição, sem espera de vez, sem o gesto de ceder.

FUTURO SONHADO - Os Jetsons, dos anos 1960 e 1970: a civilização foi além
FUTURO SONHADO - Os Jetsons, dos anos 1960 e 1970: a civilização foi além (./Divulgação)
Continua após a publicidade

Do lado de lá do balcão, o fenômeno ilumina uma política industrial cujo adversário, não há dúvida, são os Estados Unidos. O país opera há anos com metas explícitas de liderança tecnológica e digitalização. Brinquedos “inteligentes”, nesse contexto, deixam de ser apenas entretenimento para virar extensão de uma estratégia. “A China entende que a IA é uma ciência e que faz parte do progresso de uma nação. Por isso, esses brinquedos inteligentes são vistos como uma vantagem competitiva no campo da educação”, observa Thomas Law, presidente do Instituto Sociocultural Brasil-­China (Ibrachina). A leitura ajuda a explicar por que a adoção é tão veloz: se o objeto promete treinar língua, lógica ou matemática, ele ganha o carimbo de utilidade e acaba entrando no carrinho. O gesto é cultural, mas também pragmático: a família compra o que acredita encurtar o caminho para o desempenho acadêmico.

Nada disso, no entanto, significa que as máquinas devam ser mantidas do lado de fora da escola ou dos hospitais, onde também atuam, cuidando de idosos. Elas são fundamentais. A tecnologia viabiliza criações que não nasceriam sem câmera, microfone e software. O ponto: os dispositivos devem funcionar como ponte para o desenvolvimento, seja onde for, não como um refúgio da realidade. No fim, a questão não é preparar meninos e meninas para o brinquedo de IA de hoje e, sim, para um mundo com IA no futuro; aquele em que a curiosidade, a colaboração, a empatia e o pensamento crítico, as únicas tecnologias realmente exclusivas da espécie humana, conversem com peças de metal e silício. Não abandonemos ao léu os simpáticos robozinhos.

Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2025, edição nº 2967

Publicidade

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *