É no órgão temporário e indispensável para o desenvolvimento da vida, a placenta, que a ciência parece ter encontrado uma chave inesperada para um desafio antigo: restaurar movimentos de pessoas com lesões na medula espinhal. A partir de um pequeno fragmento desse órgão, geralmente descartado após o parto, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) descobriram que a laminina — uma molécula pouco glamurosa por ser pouco explorada — pode regenerar neurônios e, assim, se tornar uma aliada na recuperação de funções motoras perdidas.
Para transformar essa descoberta em tratamento, a UFRJ se uniu ao laboratório farmacêutico brasileiro Cristália e criou o medicamento experimental Polaminina. Desde 2018, o fármaco vem sendo testado em um estudo ainda não publicado — ou seja, sem validação em revistas científicas — com seis pacientes que sofreram lesões medulares completas, conhecidas como nível A, situação em que há perda total da função motora e da sensibilidade.
O protocolo de aplicação é direto. O medicamento é administrado na própria medula, dentro de até seis dias após a lesão, com doses minúsculas, de um micrograma por quilo. O objetivo é restabelecer a comunicação interrompida entre o cérebro e o corpo, que, dependendo da gravidade da lesão, pode resultar em paraplegia — perda dos movimentos das pernas — ou tetraplegia, quando os movimentos do pescoço para baixo são comprometidos.
Molécula primitiva e polivalente
A laminina vem sendo estudada há 25 anos pela professora Tatiana Coelho de Sampaio, da UFRJ. “É uma molécula de funções primitivas”, explica. “Está presente até em esponjas marinhas.” Microscópica e pegajosa, a laminina se organiza em uma espécie de teia tridimensional que participa de processos essenciais, como a sobrevivência celular e a migração de neurônios. Mas foi sua capacidade de regeneração que despertou o interesse de Sampaio, que começou a trabalhar com a molécula quase que por acaso. “Por ser tão onipresente e necessária desde os estágios mais primitivos da vida, deveria ser mais observada e valorizada”, diz a pesquisadora. “Com ela, conseguimos um efeito duplo: neuroproteção, ao conter o dano, e regeneração, ao estimular novas células. Antes da aplicação, havia menos neurônios; depois, eles proliferaram.”
Os seis pacientes vêm sendo acompanhados desde 2018, e os avanços têm sido significativos. Cinco deles saíram do nível A — sem movimento ou sensibilidade — para o nível C, recuperando parte da força e dos movimentos. Um caso, em especial, chamou atenção: o do analista Bruno Drummond, que tinha 23 anos quando sofreu um acidente de trânsito e fraturou a coluna no pescoço, perdendo completamente o controle de braços e pernas.
“No primeiro mês pós medicação, o efeito foi sutil: consegui mexer o dedão do pé. Mas aquilo não me parecia grande coisa. Nessas horas, as expectativas são muito baixas”, contou Drummond em coletiva de imprensa nesta terça-feira, 9, em São Paulo. Hoje, ele caminha normalmente e recuperou quase todo o movimento dos braços, um progresso que aconteceu de forma gradual ao longo de um ano.
“No caso dele, o diferencial foi que o medicamento foi aplicado muito rápido, nas primeiras 24 horas pós lesão. Além disso, ele iniciou a fisioterapia de modo imediato. Tempo e fisioterapia são importantíssimos para melhores desfechos”, destaca Sampaio.
Questionados sobre possíveis efeitos colaterais, os pesquisadores explicam que esse foi um dos motivos pelos quais levaram sete anos para divulgar os resultados. A ideia era acompanhar se surgiriam efeitos adversos de longo prazo — algo que, até agora, não ocorreu, pelo menos relacionados ao medicamento.
“É um estudo conduzido na emergência do hospital, com pacientes que sofreram lesões graves. Alguns efeitos colaterais seriam esperados nesse contexto, como dores de cabeça, constipação ou até problemas mais sérios, como infecções. Mas um médico externo analisou os casos e constatou que esses eventos não estavam ligados ao fármaco, e sim à gravidade das lesões”, explica a pesquisadora.
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Questões em aberto
Como se trata de um estudo inicial, ainda há muitas questões em aberto. Os pesquisadores não sabem, por exemplo, se doses maiores poderiam gerar melhores resultados, nem se o medicamento poderia ser usado mais de uma vez. Responder a essas perguntas exigiria partir da estaca zero, incluindo testes “in vitro” e em ratos antes da testagem em humanos. Também não há dados claros sobre padrões de eficácia, como o tempo de duração dos efeitos, já que o número de pacientes testados é pequeno e não permite estabelecer médias confiáveis.
Outro ponto que gera dúvidas é a aplicação do fármaco em pacientes crônicos — aqueles com lesões antigas. Essa linha de pesquisa já começou, mas ainda está em fase inicial. Há, entretanto, casos emblemáticos. Um deles é o de Hawanna Cruz: em 2017, ela caiu do terceiro andar durante uma crise de sonambulismo, perdendo os movimentos abaixo do pescoço. Três anos após a lesão, iniciou o tratamento com o medicamento à base de laminina. Apesar do tempo passado, obteve ganhos significativos, como a capacidade de dirigir a própria cadeira de rodas e integrar a seleção brasileira de rugby em cadeira de rodas.
“O que observamos é que, em pacientes crônicos, há respostas no sentido de regeneração, mas não neuroprotetoras, que contenham a progressão do dano causado pela lesão. Por isso, quanto mais cedo aplicamos o fármaco, mais promissor tende a ser o resultado. Agora, se os resultados em pacientes crônicos poderiam ser superiores em caso de outras doses ou doses superiores, isso ainda não sabemos dizer”, afirma Sampaio.
Validação sanitária
Apesar do entusiasmo em torno do medicamento, ele ainda não passou pelas etapas clássicas de validação. O próximo passo será a fase 1 dos ensaios clínicos, que depende da autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Essa fase tem como objetivo principal verificar se a substância é segura em um grupo pequeno de voluntários. Só depois viriam etapas maiores, envolvendo mais pacientes, comparação com placebo e números que permitam comprovar a eficácia. Segundo a farmacêutica Cristália, a fase 1 deve incluir mais cinco pacientes.
Estudos iniciais, como os já realizados, são importantes porque abrem caminho. Mas eles não permitem afirmar que o tratamento funciona para todos os casos. Com um número pequeno de participantes, ainda resta a dúvida: se fossem testados mais pacientes, a taxa de eficácia seria a mesma ou, em alguns casos, nula? Sem grupos de comparação e sem uma amostra maior, a ciência prefere usar termos como “promissor” em vez de “resolutivo”. Até agora, o que existe é uma prova de conceito em caráter experimental acadêmico, que não substitui a fase 1, mais ampla e supervisionada pelo órgão regulador.
É a partir dessa etapa que surge a possibilidade de disponibilizar o medicamento, seja na rede pública ou privada — um processo que exige tempo. Para ter uma ideia, a seleção de voluntários para a fase 1 pode levar seis meses, enquanto a pesquisa em si dura cerca de um ano e meio. Considerando todas as etapas, os pesquisadores estimam que ainda podem faltar cerca de três anos até que o medicamento esteja disponível, desde que passe pelas aprovações da Anvisa. Mesmo assim, os pesquisadores adiantam que já existem hospitais com contratos pré-aprovados para trabalharem com o medicamento caso exista aprovação do órgão regulador, como o Hospital das Clínicas (HC) e Santa Casa de São Paulo.
Aprovação pendente
A Anvisa informou que ainda não recebeu um pedido formal para aprovação da fase 1 do medicamento desenvolvido pela farmacêutica Cristália, à base de laminina, voltado ao tratamento de lesões de medula espinhal.
Segundo a agência, desde a submissão dos primeiros dados, entre o final de 2022 e o início de 2023, têm sido realizadas reuniões técnicas com a empresa para orientar o desenvolvimento do produto. Atualmente, a Anvisa aguarda informações complementares sobre os estudos pré-clínicos — testes indispensáveis para avaliar se a substância pode seguir para testes em seres humanos.
Até o momento, os dados apresentados à agência referem-se apenas à fase não clínica, sem aplicação em pessoas. A agência esclareceu que a empresa patrocinadora está conduzindo os testes complementares de acordo com as normas regulatórias.
“Embora os resultados de laboratórios sejam promissores, ainda não é possível fazer qualquer afirmação quanto a segurança e eficácia da substância. Este é um processo normal quando se trata da avaliação de novos medicamento, visto que a ciência é dinâmica e incerta”, escreveu a Anvisa em nota.