Na última semana de agosto, o Brasil acompanhou uma das maiores operações contra o crime organizado nacional. Centenas de policiais, promotores e agentes da Receita Federal foram às ruas para cumprir cerca de 400 mandados expedidos pela Justiça. O duro golpe, que se desenrolou em boa parte na região da Avenida Faria Lima, centro financeiro do país, escancarou a escalada empresarial da facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Além de dono de usinas de álcool, postos de combustíveis, distribuidoras e portos, o grupo é suspeito de ter montado uma sofisticada teia financeira para lavar dinheiro sujo (as estimativas chegam a 140 bilhões de reais) por meio de fintechs. A investigação fere gravemente a maior falange mafiosa do país, mas ela está longe de ser a única a se valer da combinação de enriquecimento ilícito em larga escala e engenharia financeira complexa para ocultar a origem ilegal do dinheiro. “Abriu-se a caixa de Pandora, talvez venham outros tantos”, alerta o promotor Yuri Fisberg, do Ministério Público de São Paulo, um dos responsáveis pela investigação.
O PCC é de fato, ao lado do Comando Vermelho, um dos nomes mais conhecidos do ecossistema criminoso nacional. Mas o que não lhe falta é companhia. Um estudo do Ministério da Justiça identificou 88 facções atuando no Brasil, a grande maioria (72) nos limites de seus estados. Mas a crescente interação das duas maiores quadrilhas com o tráfico internacional de drogas, com rotas que cortam a América do Sul, passam pela África e chegam à Europa, também tem levado à crescente presença em território brasileiro de organizações estrangeiras — sul-americanas, italianas, mexicanas, balcânicas e chinesas, boa parte atuando em parceria com as falanges brasileiras, para traficar ou lavar dinheiro no país (veja o quadro).
Um dos precursores são os grupos mafiosos italianos, como a Camorra — que forneceu “base teórica” para o que viria a ser o PCC, durante convivência nos presídios brasileiros nos anos 1990 —, a Cosa Nostra e a ‘Ndrangheta. A Cosa Nostra teve um de seus principais nomes vivendo no Brasil: Tommaso Buscetta, que na década de 1970 comandou o tráfico de heroína e cocaína para a América do Norte. Preso em 1972 pelo delegado Sergio Paranhos Fleury, foi extraditado, mas não sem antes dizer que “São Paulo era o melhor lugar do mundo” e que retornaria, o que de fato ocorreu, em 1983, quando foi novamente preso. Quase quarenta anos depois, em 2021, em João Pessoa, a polícia prendeu Rocco Morabito, líder da máfia calabresa ‘Ndrangheta, uma das maiores parceiras do PCC no envio de drogas à Europa. Na Justiça Federal tramita agora uma ação contra três mafiosos italianos que, entre 2009 e 2024, abriram construtora e até pizzaria, tudo de fachada, no Rio Grande do Norte e na Paraíba para lavar dinheiro da Cosa Nostra. Ao menos 300 milhões de reais foram usados no esquema, mas há suspeita de que as cifras passem de 3 bilhões de reais. “O Brasil sempre foi considerado um país para as máfias. Nossas investigações sempre nos levaram ao Porto de Santos”, disse o procurador de Nápoles, Nicola Gratteri, em passagem pelo Brasil, em abril — ele estuda a ação das máfias italianas no país desde 1991. Diferente da Cosa Nostra, que tem hierarquia, a ‘Ndrangheta possui ramificações de grupos familiares. A máfia calabresa é considerada um dos grupos mais poderosos do mundo hoje e tem uma forte influência no transporte de cocaína originário do Peru ou Bolívia, que passa pelo Brasil, até ser enviado para África ou Europa, via portos brasileiros.
Mas os italianos não são os únicos a se valerem do território brasileiro para os negócios sujos. Há pelo menos cinco anos, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) alerta o governo sobre a atuação de dois cartéis mexicanos, Sinaloa e Jalisco Nueva Generación, na lavagem de dinheiro e tráfico de cocaína, anfetamina e fentanil. “A produção de droga sintética no Brasil, por meio do Jalisco, foi uma novidade para a gente”, diz a VEJA um membro da Abin. Os mexicanos também atuam na Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai) — a movimentação já chamou a atenção dos EUA, que anunciou um escritório com agentes do FBI no lado paraguaio. O governo brasileiro vê com tensão o movimento, porque tem uma fronteira de quase 17 000 quilômetros com os vizinhos e teme a migração das atividades criminosas. Somente no primeiro semestre, a polícia paranaense apreendeu 43% a mais de maconha. “O prejuízo foi de 600 milhões de reais aos grupos que atuam na Tríplice Fronteira”, estima o secretário de Segurança Pública, coronel Hudson Teixeira.
Outro alerta envolve a atividade de grupos de países fronteiriços. Uma organização que preocupa as autoridades de Roraima, que faz divisa com a Venezuela, é a Tren de Aragua, que atua no tráfico, extorsão, prostituição, contrabando de pessoas e lavagem de dinheiro. O bando começou em 2014 no presídio Tocorón, a 60 quilômetros de Caracas, onde montou um centro de operações com direito a piscina, boate, bares e playground — luxo que lembrou a Colômbia dos anos 1990, quando o traficante Pablo Escobar construiu seu próprio presídio.
Um dos motivos que alavancam a atuação do grupo em solo brasileiro é o aumento da imigração venezuelana, impulsionada pelo sofrimento imposto à população pelo regime de Nicolás Maduro. Segundo a última estimativa do IBGE, Roraima foi o estado com maior crescimento demográfico no último ano (3,1%). “A emergência humanitária complexa afetou o sistema criminal. Em princípio, os criminosos começaram a se mover nas fronteiras e nas zonas mineiras, o que gerava recursos. Mas se deram conta de que poderiam ter negócios em outros países, o que é habitual desses grupos que buscam novos mercados. Então, começaram a seguir a rota dos imigrantes”, diz a jornalista Ronna Rísquez, autora do livro O Trem de Aragua: o Grupo que Revolucionou o Crime Organizado na América Latina (2023).
Em Roraima, há três inquéritos na Polícia Civil sobre a facção, mas, ao contrário dos grupos brasileiros, seus criminosos tentam esconder a ligação com o Tren de Aragua. “Eles não gostam de se identificar porque na Venezuela as forças policiais são muito corruptas e eles acabam sendo vítimas de extorsão”, diz o delegado Wesley Costa de Oliveira. Além de Roraima, a atuação do bando já é registrada no Amazonas e nos três estados do Sul, onde fazem conexões com Argentina, Uruguai e Paraguai. Na terça-feira 2, o grupo ganhou visibilidade quando o governo Donald Trump bombardeou um barco supostamente da facção — que ele classifica como terrorista —, provocando onze mortes. “Que isso sirva de aviso para qualquer um que esteja pensando em trazer drogas para os EUA. Cuidado”, disse o presidente americano. A organização venezuelana, assim como os cartéis do México, é responsável por boa parte da droga vendida nos EUA. Foragido, um dos líderes do bando, Hector “Niño” Guerrero, pode estar no Brasil, segundo autoridades.
O país ainda tem espaço para grupos criminosos em ascensão no cenário internacional. A forte máfia dos Bálcãs, que compreende organizações da Albânia, Sérvia, Eslovênia e Bulgária, responde pela distribuição de cocaína via Leste Europeu, além da compra e venda de armas. Autoridades não descartam que os criminosos balcânicos, conhecidos pela violência, se tornem maiores do que a ‘Ndrangheta na operação de drogas na Europa. Também há espaço no Brasil para quadrilhas que, apesar de não atuarem em larga escala com tráfico de drogas, lucram com outros crimes, como a máfia chinesa. Em São Paulo, um integrante do grupo Bitong foi preso em janeiro deste ano na região central da capital paulista. Lin Xianbin, 52 anos, foi identificado pelo sistema Smart Sampa, da prefeitura, praticando o que o grupo mais sabe: explorar comerciantes da comunidade asiática por meio de sequestros, extorsão, ameaças e até execuções. O líder do grupo, Liu Bitong, foi preso pela PF em Pacaraima, em dezembro de 2024, quando tentava fugir do país.
O Estado brasileiro não pode reclamar da falta de alertas. As comunicações de operações suspeitas enviadas ao Coaf quando há indícios de lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo ou outros ilícitos tiveram crescimento de 767%, entre 2015 e 2024, passando de 296 200 registros para 2,6 milhões, segundo estudo do Instituto Esfera em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A informação de ilícitos envolvendo tráfico de drogas e de armas e suspeitas relacionadas a facções foi de 540, em 2015, para 11 455, em 2024, e hoje responde por mais da metade do total (veja o quadro na pág. 43). Enquanto isso, o Coaf tem apenas 93 funcionários, todos emprestados (o órgão não tem efetivo próprio), e enfrenta alta rotatividade de pessoal, o que não contribui para a formação de quadros e acúmulo de conhecimento.
Enquanto isso, os criminosos se modernizam rapidamente. Com a evolução tecnológica, os grupos abriram o leque para operações de ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro. As principais ferramentas são fintechs, bets, criptoativos e ouro. O caminho é facilitado porque todos esses meios têm legislação recente, inadequada ou insuficiente, ao mesmo tempo que a estrutura de fiscalização é precária — o Banco Central não tem setor especializado em criptomoedas, um dos meios de transação que mais crescem entre as quadrilhas. Também contribuem para a desonrosa posição brasileira de “paraíso das máfias” as fronteiras porosas, os amplos territórios em que o Estado pouco manda e são controlados pelo crime, a localização privilegiada, com boa estrutura de rodovias e portos, e a falta de articulação entre os órgãos públicos.
O governo Lula tenta, timidamente, alguma reação. Aposta suas fichas na PEC da Segurança Pública, que dá mais poderes à União para enfrentar o crime organizado interestadual e transnacional, mas a iniciativa está parada desde que foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em 15 de julho. O governo também tenta emplacar uma legislação moderna antimáfia, mas o projeto está na gaveta do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, em meio a divergências internas, como a criação de uma agência, que sofre oposição da PF. A proposta prevê aumentar os instrumentos para sequestro, confisco e indisponibilidade de bens. O governo também está prestes a lançar o Centro de Cooperação Policial Internacional da Amazônia, para, entre outras frentes, combater o garimpo ilegal.
É preciso urgência, porque o campo de batalha está a cada dia mais ocupado, como ficou claro na recente operação que flagrou tentáculos do PCC na Faria Lima, o centro financeiro do país. Além de mostrar a que nível chegou o poderio das facções, a operação realizada com alto nível de articulação entre as instituições significou um sopro de esperança de que alguma reação organizada do Estado pode, enfim, ser possível.
Um “paraíso fiscal” na Faria Lima
A investigação da Polícia Federal, Receita, Ministério Público e outros órgãos que resultou em uma ruidosa operação de busca e apreensão na Avenida Faria Lima, principal endereço financeiro de São Paulo, há pouco mais de uma semana, está longe do fim. O cerne da ofensiva está na atuação das fintechs, instituições de pagamento que teriam servido para lavar dinheiro do PCC e outros grupos criminosos, inclusive estrangeiros. Mas a investigação deve chegar também aos bancos.
A Operação Carbono Oculto, que se desenrolou em São Paulo, vasculhou 42 empresas, que movimentaram 80 bilhões de reais, por meio de 200 fundos de investimento, que podem ter sido usados para ocultar patrimônio. Os fundos operam com bancos tradicionais por meio da chamada “conta-bolsão”, que as fintechs abrem para movimentar dinheiro sem precisar informar sua origem. Metade dos fundos do Banco Master, para citar um exemplo, é administrada pela Trustee DTVM e pela Reag Investimentos, alvos da operação. A primeira pertence a Maurício Quadrado, ex-sócio do Master até o ano passado e também dono do Banvox DTVM, outro alvo da ofensiva.
As fintechs contribuem para formar múltiplas camadas de anonimização do rastro do dinheiro ilegal. Elas movimentam dinheiro transferindo-o para um fundo, que é de propriedade de outro fundo, que tem cotas de outro fundo, e assim sucessivamente. No final, acaba sendo usado na aquisição de usinas de álcool, terminais portuários, empresas de transporte e fazendas, entre outros negócios. Na esteira da operação, a Receita baixou uma instrução normativa que aumenta a fiscalização sobre as fintechs, algo que havia tentado emplacar em janeiro, mas recuou diante da repercussão negativa. “Publicamos isso de maneira a fechar essa brecha, esse paraíso fiscal que se criou pela conjugação de instituições de pagamento com fundos de investimento”, disse o secretário especial da Receita, Robinson Barreirinhas, na Comissão de Tributação e Finanças da Câmara, na quarta-feira 3. O próximo passo será saber se os bancos falharam na fiscalização. Segundo Barreirinhas, “todos os nomes envolvidos estão numa longa representação da Receita Federal de mais de 200 páginas com todos os esquemas, todos os nomes e todos os detalhes, não só das empresas, mas dos sócios”. “O processo vai correr agora contra essas pessoas que não tiveram a cautela que se espera de alguém que opera no sistema financeiro”, afirmou.
As fintechs cresceram e operaram por muito tempo longe dos radares do poder público. Segundo o relatório Distrito Fintech Report 2025, o Brasil tem 1 592 fintechs, 60% de toda a América Latina, mas apenas 334 estão registradas no Banco Central. Essas companhias são usadas não só em lavagem de dinheiro, mas para sustentar operações ilegais no mercado de apostas e no contrabando de mercadorias, entre outros. Duas fintechs investigadas pelo MPSP, a 2GO Bank e a InvBank, receberam dinheiro do PCC e repassaram a laranjas nos EUA, Paraguai, Argentina, Holanda, Itália e China. Relatório do Coaf mostrou que a 2GO Bank atuava como banco para casa de apostas, corretora de criptomoedas e investidores esportivos, enquanto a InvBank firmava contratos com construtoras para a compra de imóveis de luxo. O fio que foi puxado pela megaoperação na Faria Lima pode ir longe.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2025, edição nº 2960