por Ramon Barbosa Franco
O título desta crônica seria outro. A proposta seria algo em torno de: ‘Por favor, respeite a minha ficção’. No fundo, o substantivo feminino ‘ficção’ seria substituído por um parecido, porém, como gosto de divagar com a criação literária, preferi deixar a referência a arte de recriar a realidade.
“Por favor, respeite a minha forma de recontar, a minha forma de reconstruir a minha própria realidade”.
Este é, literalmente, o clamor de uma personagem que me incomoda, e muito. Esta personagem está no romance que escrevi fora do Brasil, no ano de 2022, ‘Dias de pães ázimos’. É mulher, linda balzaquiana, e após um hiato de décadas, reencontra o personagem-principal, contudo abandona-o numa estação.
Personagens que me incomodam na minha própria ficção não são raros assim. ‘Pierrô’, o serial-killer de ‘A próxima Colombina’, ainda me dá medo. Não foram raras as vezes que minha ex-mulher, sentindo a minha falta no quarto altas horas da madrugada, no início dos anos 2000, entrava sorrateira no escritório e me via escrevendo no computador e exclamava: ‘Ramon, está trabalhando até agora?!’. E eu, que estava no meio de uma cena onde o ‘Pierrô’ estava fazendo vítimas, quase sofria um infarto de tamanho susto.
E dizia: “PQP, vai assustar outro! Tô aqui no meio de uma cena de medo e você aparece do nada!”. Ria muito com isso, depois. Um dos mambembes gêmeos de ‘Canavial’, também me assusta. Ele só usa paletó xadrez e é ventríloquo, quando conversa com as pessoas não usa a própria voz, e sim a voz de ‘Pinóquio’, seu boneco e fiel escudeiro.
Em ‘Três minutos’, um microconto onde descrevo uma visita incomum, o ser que entra no quarto e começa a conversar com o personagem, que está olhando para uma tela que traz as reproduções das pirâmides maias, me tira o sono. Não é porque sou o autor destes personagens esdrúxulos que tenho que ter empatia por eles.
Outro dia topei com uma colega de trabalho lendo ‘Frankenstein’ de Mary Shelley e nesta trama, o personagem Victor Frankenstein abomina o ser que ele próprio criou, o tratando de ‘coisa’, nem ao menos lhe dando a dignidade de um nome. E se me perguntarem então, por que você dá vida, ainda que na ficção – onde tudo existe, acontece e se desenrola plenamente – para estas criaturas inomináveis? Bom, esta é uma das funções de um escritor: criar, ainda que esta criação não seja agradável, mas que traga a natureza humana, e dentro do enredo sirva para algo. Um ‘pé na bunda’, na vida real, desencadeia um poema, uma sinfonia ou até um longa.
O cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-2022) ensinava que tudo o que você precisa para fazer um filme ‘é uma mulher e uma arma’. Não esquecer de nada, para alguns – e eu me incluo neste grupo – também serve para fazer um filme ou escrever um romance. Então, aquela amargura que determinada pessoa lhe plantou no passado, no meu caso, é frutificada em cenas de HQs, trechos ficcionais de contos e em histórias literárias. Afinal, o objeto de muitos escritores nada mais é do que a sua própria vida. E na ficção, assim como na vida, existem aquelas pessoas que amamos, sentimos falta, odiamos e as que jamais esqueceremos.