Docente da rede pública publicou desabafo nas redes sociais e ganhou apoio de centenas de outros educadores: ‘As crianças não sabem mais o que é regra e o que é autoridade’, afirma. Especialistas explicam que a permissividade vem de uma interpretação errada de outra filosofia: a educação positiva
Por Luiza Tenente
O que é educação permissiva?
“Está um inferno dar aula para o seu filho. Não dá para negociar com 30 ou 40 crianças ao mesmo tempo. Precisa ter ideia de respeito ao próximo, de igualdade.”
O desabafo é de uma professora da rede pública de São Paulo, que diz ter chegado ao seu limite: está desesperada por ter de lidar com crianças que não seguem regras nem aceitam a autoridade (mesmo que respeitosa) dos docentes.
Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, Rebeca Café, de 29 anos, atribui esse caos à “educação permissiva”. É a aplicação malsucedida da “educação positiva”, que está em voga nas redes sociais por pregar noções de respeito, diálogo e negociação na educação dos filhos, sem autoritarismo [veja detalhes ao longo da reportagem].
Você está cometendo esse deslize em casa e sendo muito permissivo? Ou, no outro extremo, anda muito autoritário? Faça o quiz mais abaixo e descubra seu perfil.
Para a professora, a tentativa de os pais “camuflarem” as regras e sempre permitirem que a criança tome decisões está inviabilizando o trabalho dos professores. São casos em que os familiares, em vez de falarem, por exemplo, “João, é hora de almoçar”, dizem: “João, você prefere almoçar com o garfo amarelo ou com o azul?”.
Ao g1, Rebeca conta que não se opõe à educação respeitosa — inclusive, chega a aplicá-la com o filho, em casa. Mas percebe que uma interpretação errada do conceito está tomando a internet e gerando indivíduos com dificuldade de viver em sociedade. Os alunos não aceitam mais, por exemplo, que haja um horário fixo para terminar o recreio, mesmo que outra turma precise ocupar o parquinho em seguida.
“Só no ‘achismo’, sem o embasamento correto, teremos a permissividade. Em casa, a criança não sabe mais o que é regra e o que é autoridade. Na escola, portanto, não vai entender que existem normas e que os adultos são responsáveis por ela. Vira uma pessoa egocêntrica, que não se desenvolve bem no coletivo e que quer toda a atenção para si. Atrapalha o rendimento dos colegas”, afirma Rebeca.
Descubra seu perfil como pai/mãe e, em seguida, entenda:
- a diferença entre educação positiva e permissiva;
- se tudo realmente precisa ser negociado com a criança (até a hora de tomar banho);
- quais os desdobramentos na escola;
- como evitar cair na permissividade ou no autoritarismo.
Mas, afinal, qual é a diferença entre educação positiva e permissiva?
Segundo a pedagoga Ariella Warner, especialista na abordagem cognitivo-comportamental na infância e na adolescência, a educação positiva nasceu para se opor à educação violenta, à opressão e ao silenciamento das crianças. Deixar de castigo, fazer ameaças, gritar ou usar força física são práticas que devem ser abandonadas.
“O problema é que as pessoas que pregam essa filosofia do respeito estão se perdendo no personagem. Confundem ser ‘respeitoso’ com ser ‘permissivo’. Precisamos fazer as pazes com a nossa autoridade e entender que estamos guiando nossos filhos, dando a mão para eles e mostrando o caminho”, diz.
“Isso é diferente de ir andando atrás deles e reduzindo os danos. É importante fugir do autoritarismo, mas sem esquecer que as crianças não têm maturidade para gerenciar tudo”, afirma.
Maya Eigenmann, neuropedagoga focada em educação positiva, acrescenta que os adultos devem ser os guias das crianças, sempre estabelecendo limites.
“Não posso me ausentar das minhas responsabilidades e deixar uma criança que ainda está em desenvolvimento ‘largada’. Para se sentir segura, ela precisa de referências e de um adulto em quem confie”, afirma.
É verdade que, na educação positiva, tudo é negociado?
Está na hora do banho.
Você pergunta: “João, prefere tomar banho agora ou daqui a 5 minutos?”
Está na hora do almoço, e a criança necessita de mais ferro na alimentação.
“João, você prefere comer feijão ao lado ou em cima do arroz?”.
São formas de disfarçar as regras, para que a criança as obedeça ao sentir que está tomando decisões importantes.
Isso é educação positiva? Não. É educação permissiva, explica Warner.
“Isso não é uma negociação com a abordagem correta. É possível ter um diálogo, mas sem abrir mão da regra. Por exemplo: ‘precisamos tomar banho; vamos pensar em um jeito divertido? Que tal levar seus pratinhos para o chuveiro? Tem outra ideia?’. Se a criança não entrar no jogo, terei de dizer: ‘Puxa, você não está mesmo no clima de um banho divertido. Vamos, então, tomar o banho normal mesmo.”
O importante, afirma a pedagoga, é não abrir mão de que é, sim, hora de ir para o chuveiro.
“Se chorar, a gente espera, acalma, diz que está tudo bem e explica que, mesmo depois do banho, os brinquedos continuarão ali. É preciso ‘congelar’ a cena, ser carinhoso e acolher.”
Quando a criança estiver mais “regulada”, deve cumprir a ordem dos pais, sem negociações de “mais 5 minutinhos” ou “só mais um desenho animado”.
“Elas precisam aprender a negociar, sim, mas não de um jeito fake. Se você quiser ouvir Beatles no carro, mas ela preferir Galinha Pintadinha, dá para chegar a um consenso e colocar 5 músicas de cada. Isso é negociação. Mas se for uma ordem disfarçada, não faz sentido. Ela precisa entender que existem regras”, reforça a pedagoga Warner.
De acordo com a psicóloga Rita Calegari, os pais andam tão preocupados em não desagradar aos filhos que evitam ao máximo qualquer tipo de embate. Não querem que sintam raiva deles. É uma geração de pais inseguros, que foram muito reprimidos na infância e que agora, para não repetir os mesmos erros dos quais foram vítimas, vão para o outro extremo, diz a especialista.
“Se a criança não obedecer, uma coisa é bater nela [que seria algo autoritário e agressivo]. Outra é aceitar que ela não está feliz, acolher o choro, dar um abraço e manter a orientação inicial, sem voltar atrás. Os pais que evitam embate acabam criando indivíduos sem resiliência”, afirma.
E o que acontece na escola?
A palavra “autoridade” não significa “autoritarismo”, ok? É possível estabelecer que os adultos são os “guias” da criança, que vão dar as orientações corretas para que ela esteja sempre em segurança, sem que essa “hierarquia” venha acompanhada de gritos, ameaças e castigos.
Se, em casa, os filhos não entenderem que precisam obedecer aos pais, não será na escola que respeitarão os professores, afirma Warner.
“É uma transferência de autoridade. É a professora que deve ser ouvida. A criança pode perguntar, dialogar, mas o que for dito precisa ser aceito. Caso não haja esse tipo de relação em casa, ela vai ficar totalmente desregulada nas frustrações do dia a dia”, afirma a pedagoga.
Aí é que entra o caos descrito pela professora no vídeo que viralizou.
Imagine só, em uma escola pública, 30 alunos de 9 anos que, ao mesmo tempo, dizem que não vão aceitar que acabou a hora do recreio. Todos querem negociar mais 10 minutos ou mais uma brincadeira.
“Fica inviável para a gente, com salas superlotadas. Não dá para lidar com essas demandas socioemocionais, apagando incêndios o tempo todo. Precisamos dar conta de ensinar o conteúdo, de preencher todas as plataformas do governo, de medir o desempenho da turma, de incluir alunos atípicos… Conciliar tudo isso com crianças que não aceitam regras leva ao nosso colapso. Não estamos dando conta”, afirma Rebeca ao g1.
“Não tem como, sem um professor auxiliar ou sem um apoio para a inclusão, colocar em prática essa negociação a todo tempo. Existem questões de funcionamento da sociedade. Na vida adulta, nem tudo será negociado”, diz.
Como aplicar a educação positiva sem cair na permissividade?
Construa uma noção de autoridade que seja afetuosa e serena, sem caos e violência (verbal ou física). A criança vai enxergar, aos poucos, que você é o “farol” dela. Saberá que, se os pais estão falando que precisa fazer determinada tarefa, é pelo bem dela.
Essa consciência só será manifestada a partir dos 4-5 anos. Até lá, seu filho vai agir de forma mais instintiva. Por isso, é importante não mudar a regra depois de um choro ou de uma reclamação.
Diga que entende a insatisfação da criança, ofereça colo, dê um abraço, mas não mude a regra. A noção de respeito à sua autoridade vai ser construída aos pouquinhos.
Não iniba seu filho quando ele demonstrar revolta ou tristeza. Não tem problema se ele chorar ou se disser que não ama mais a família. Evite frases como “engole esse choro!”. O importante aqui é que ele se sinta acolhido, perceba que está em um ambiente seguro e que, mesmo assim, note que as regras não serão modificadas.
Gritos e castigos traumáticos não devem jamais fazer parte da rotina da família.
A educação não pode ser focada apenas no “eu”. É preciso pensar em educar um indivíduo para o coletivo. Saber lidar com frustrações faz parte disso. Aos 17 anos, por exemplo, em um primeiro namoro, será preciso respeitar a vontade do parceiro/parceira. No vestibular, também não será possível “negociar” a aprovação com a universidade.
Quer exemplos práticos do que fazer em cada situação, como um choro no parque? Faça o quiz mais acima, descubra seu perfil de pai/mãe e veja as dicas de como agir para buscar o equilíbrio.
Matéria: G1